"É preciso
desmanchar essa ideia do livro como objeto sagrado; é sagrado sim, mas para
estar nas mãos das pessoas, ser manipulado pelas crianças."
Magda Soares
Quanto mais cedo
histórias orais e escritas entrarem na vida da criança, maiores as chances de
ela gostar de ler. Primeiro elas escutam histórias lidas pelos adultos, depois
conhecem o livro como um objeto tátil “que ela toca, vê, e tenta compreender as
imagens que enxerga”, diz Edmir Perrotti, professor de Biblioteconomia da
Universidade de São Paulo (USP) e consultor do MEC. “As crianças colocadas em
condições favoráveis de leitura adoram ler. Leitura é um desafio para os
menores, vencer o código escrito é uma tarefa gigantesca.” A criança lê do seu
jeito muito antes da alfabetização, folheando e olhando figuras, ainda que não
decodifique palavras e frases escritas. Ela aprende observando o gesto de leitura
dos outros – professores, pais ou outras crianças. O processo de aprendizado
começa com a percepção da existência de coisas que servem para ser lidas e de
sinais gráficos. Para Magda Soares, do Centro de Alfabetização, Leitura e
Escrita da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais
(Ceale/UFMG), esse aprendizado chama-se letramento: “É o convívio da criança
desde muito pequena com a literatura, o livro, a revista, com as práticas de
leitura e de escrita”. Não basta ter acesso aos materiais, as crianças devem
ser envolvidas em práticas para aprender a usá-los, roda de leitura, contação
de histórias, leitura de livros, sistema de malas de leitura, de casinhas, de
cantinhos, mostras literárias, brincadeiras com livros. Edmir afirma que “a
criança pode não saber ainda ler e escrever, mas ela já produz texto: ela
pensa, fala, se expressa”. Segundo Magda, um programa de formação de leitores
deve se preocupar também com o desenvolvimento do professor como leitor,
“porque se a pessoa não utilizar e não tiver prazer no convívio com o material
escrito, é muito difícil passar isso para as crianças”.
A descoberta coletiva da
leitura e da escrita
Algumas crianças não têm
ambiente favorável à leitura em casa, mas há outras que ouvem histórias lidas
pela família. “Se for criado um ambiente de leitura nas escolas, as crianças
levarão a prática para suas casas. E vice-versa, haverá crianças que trarão
leitura para a escola”, argumenta Jeanete Beauchamp, diretora de Políticas de
Educação Infantil e Ensino Fundamental da Secretaria de Educação Básica do
Ministério da Educação (SEB/MEC). Participar de grupos que usam leitura e
escrita é, de acordo com Ester Calland de Souza Rosa, professora do Centro de
Educação da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), o caminho do
aprendizado. Na escola, a criança deve ser rodeada de livros e materiais em
espaços de leitura, seja biblioteca, sala ou um cantinho dentro da sala de
aula. Para Magda, “o papel da professora é intermediar o contato do aluno com a
escrita e a leitura, colocar o livro disponível e orientá-la no seu uso, no
convívio com o material escrito”. As atividades são várias: contar e ler
histórias, folhear, mostrar o material, buscar informação, usar material
escrito de diferentes gêneros, como acontece no Sementinha do Skylab, em
Pernambuco . “Mesmo que a professora saiba a resposta, é a primeira
oportunidade para dizer ‘vamos buscar na enciclopédia, que traz informação’”,
diz a pesquisadora mineira. O medo de a criança rabiscar e rasgar os livros faz
os professores criarem dificuldades de acesso ao material. Essas restrições
acabam mostrando o contrário do que deveria ser: que a leitura é difícil,
chata, porque não pode tocar no livro. “Vai estragar sim porque ela ainda não
tem os hábitos e a habilidade motora para lidar com o livro”, esclarece Magda.
Mas é também a oportunidade de a professora ensinar a criança a respeitar o
livro e como manipulá-lo sem rasgar, “senti-lo como alguma coisa familiar”.
Assim a criança entra no mundo da literatura, da escrita, do livro. Quando a
criança está na fase de experimentação inicial, os de durabilidade maior –
feitos de pano, de plástico, emborrachado, de papelão duro – são mais
adequados. A experiência do Centro de Educação Infantil Hilca Piazero
Schnaider, em Blumenau (SC) é exemplar (veja box abaixo). Mesmo livros de papel
são úteis para os pequeninos porque a professora pode folheá-los, ler a
história, mostrar o livro, ensinando zelo pelo objeto. “Todo suporte de texto é
fundamental para a criança de Educação Infantil”, diz Rosana Becker,
pró-reitora de Graduação da Universidade Estadual do Oeste do Paraná
(Unioeste), associada à Rede Nacional de Formação Continuada do MEC. O trabalho
com o livro de literatura infantil exige preparo, ensinando para as crianças o
que é um material para ser lido e não para ser rabiscado. “A criança precisa
experimentar a escrita também, mas vai ser no papel sulfite ou craft, no
caderno de desenho, na lousa, no chão”, diz Rosana, “e não no livro”.
Textos bons e diversos
Para as crianças cujas
famílias têm baixa escolaridade ou são analfabetas, a escrita pode parecer
inútil porque elas não conhecem o “gesto de leitura” em casa. Na escola, a
criança deve crescer num ambiente em que veja que a leitura e a escrita estão
presentes em muitas situações, “tanto nas lúdicas – leitura de livros de
história, poesia, brincadeira com trava-línguas e parlendas – até os usos mais
sociais – jornal, listas, escolher livros apenas para ensinar algo como
higiene, cuidado ou valor moral. Ester sugere o uso de textos rimados porque os
mais novos podem memorizar o texto. “Aí ela faz de conta que está lendo, mostra
com o dedo num cartaz ou livro sabendo que o texto está escrito ali”. A criança
vai progressivamente identificando os sinais gráficos, uma letra, uma palavra,
sons que se repetem, e começa a perceber as regularidades da língua. “Assim
você faz essa passagem da oralidade para a escrita”, sintetiza a professora da
UFPE. Mesmo que narrativas e poemas sejam prioridade nas atividades de leitura,
Magda chama a atenção dos professores para não se trabalhar exclusivamente com
o que diverte e agrada. Os alunos precisam ter contato com textos impressos não
literários que têm diferentes funções e objetivos. Revistas infantis, em
quadrinhos, propaganda, embalagens, receitas, bulas de remédio, certidão de
nascimento também devem ser objetos de experimentação. “Revistas e jornais, a
princípio para adultos, têm muita ilustração, muito texto, a criança gosta de
manipular e até de recriar”, diz ela, “recortando figuras, letras, palavras”.
Familiarizada com a
diversidade
As crianças querem ouvir
histórias desde pequenas, mas essas histórias, segundo Magda, “têm de ser
adequadas, com tamanho adequado, contadas ou lidas da maneira adequada à idade”
para elas gostarem da atividade. “A criança precisa muito de fantasia e de
imaginação”. Familiarizada com a diversidade de textos que existem – suportes
diferentes (cartaz, livro, jornal, revista, etc.), variedade de formato e
tamanho de letras, composição gráfica, disposição da imagem em relação ao texto
–, a criança deduz o funcionamento da escrita. “Mesmo antes de ler e escrever
de forma autônoma, ela descobre coisas sobre o código justamente em contato com
esses tipos diversos de materiais”, diz a pesquisadora de Pernambuco, “e não só
aqueles que foram produzidos especificamente para a escola, como abecedários e
jogos com letras”.
Acolher o interesse dos
pequenos
“O espaço de leitura tem
de ser extremamente acolhedor, preparado na medida da criança; ela não pode
encontrar obstáculos nem sentir medo de chegar ali”, afirma Edmir. As regras de
uma biblioteca para adultos – silêncio e imobilidade – não valem para crianças,
principalmente as mais novas. O espaço deve ser convidativo e confortável,
permitir que elas circulem e falem. “E tem de ser um lugar de muita interação,
onde adulto apóia e compartilha, ajudando a encontrar o caminho da leitura”,
detalha o especialista.
Fonte:
Alfabetização e Cia.